quinta-feira, 19 de maio de 2016

O homem velho


Às vezes, a cada manhã, frente ao espelho, diante da minha imagem ali refletida sou tomado por certo sobressalto, querendo entender o que foi feito dessa avalanche de anos que se abateu sobre mim. Foram anos demais, tempo demais para o que fiz, e para o que aqui deixarei quando me chamar saudade, como no samba de Nelson Cavaquinho, apesar da pretensão dessa lacuna, desse vazio que tolamente imagino deixar, mas que certo mesmo, ficará entre os meus.

Mas, nem tão cruel, nem tão indulgente assim comigo, pois valeu o pouco de suor que derramei neste planeta, na família que construí, na minha esposa e companheira, nas minhas lindas filhas, nos meus genros, em Julinha, na grande família que nos cerca, acolhe, ampara, ama e participa, valerá sempre.

Pelos livros que li, pelos filmes que vi, das canções que não canso de ouvir onde quer que esteja; dos discos e livros que perdi pra quem não soube amá-los tanto quanto eu; dos lugares onde estive e que talvez nem volte mais, mas que deixaram imagens que nem o tempo vai apagar; nos amigos perdidos prá nunca mais; dos sonhos e pesadelos vividos frente a realidades tão duras para a pureza de um mundo melhor.

Por ter amado e continuar amando os Beatles e os Rolling Stones; pelos livres, loucos e tensos anos 70; pelos conselhos de mãe Maria, eternizados em suas cartas que guardo comigo como um tesouro amarelado pelo tempo; por assistir com meus cabelos embranquecidos, show de rock, novos artistas, solos de guitarras na Concha, cercado de jovens e envolto por uma leve nuvem de fumaça dos seus baseados... numa boa. Por ouvir despido de qualquer preconceito, Mick Jagger e Paulinho da Viola com a mesma intensidade e emoção. Valeu! 

O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais
O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais
O homem velho é o rei dos animais

A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol
As linhas do destino nas mãos a mão apagou
Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n'roll
As coisas migram e ele serve de farol

Luz fria, seus cabelos têm tristeza de néon
Belezas, dores e alegrias passam sem um som
Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron
E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom

Os filhos, filmes,livros,ditos como um vendaval
Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que é imortal

Versos: Caetano (O homem velho - CD Velô)

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