sábado, 26 de maio de 2012

Com a perna na mão.


Nos acostumamos a ter com os médicos uma relação de reverência e cerimônia que transcende o respeito profissional. São para nós criaturas sobre-humanas a quem depositamos todas as esperanças de cura ou alivio para os nossos males, antes de passarmos no padre, no bispo, no pastor, no terreiro, nas sessões de descarrego ou em tudo mais que a crença ou descrença permita. Toda esta gama de possibilidades é posta em prática depois de um desengano médico, onde aí qualquer coisa vale, até raspar a cabeça e botar ebó em encruzilhada. Recebemos um diagnóstico médico como quem aguarda o anjo Gabriel, trazendo as boas novas ou as péssimas noticias sobre o que se passa em nosso interior e a revolução silenciosa que se opera bem dentro de nós.

Após mais de um ano sem visitá-lo voltei a Dr. Nery, um dia após ter participado da Lavagem do Bonfim, este ano, em que algumas de suas sábias instruções nestes doze anos de acompanhamento foram irresponsavelmente descumpridas. Recebi do médico amigo todo o tipo de reprimenda possível, ouvi pelo menos umas dez vezes a palavra “sal”, que eu repetia silenciosamente “afasta de mim, este sal”. Restabeleceu a medicação que eu havia deixado de tomar, sem saber explicar por que e, por um momento cheguei a imaginar que ele sacaria de sua gaveta uma régua ou palmatória e começasse ali mesmo consertar o que ainda havia jeito de remendar. Hoje, quase cinco meses depois, o carro passou a funcionar como dantes, após duas passagens logo após aquela, pela oficina, quer dizer seu consultório.

Mas, os médicos são gente como a gente, pessoas também inseguras, vaidosas, egoístas, obsessivas, temperamentais conforme depoimentos de alguns cirurgiões em reportagem que li recentemente na revista Isto É. Um deles conta que a primeira amputação que fez, foi de uma perna o que lhe causou desconforto e um quase ataque de apoplexia. Com a perna na mão começou a tremer, suas mãos pareciam não suportar o membro amputado que acabou se espatifando no chão, para espanto da equipe que participava do procedimento. Em outro momento narra o descuido que pode ocorrer em alguma incisão, feita onde não devia, deixando o cirurgião em crise, gritando e atirando os instrumentos no chão. Outro fala da experiência acumulada com o passar dos anos em centros cirúrgicos e que, contraditoriamente, o deixa mais próximo do erro. O que é inaceitável já que existe uma tendência em se achar dono da verdade, próximo de Deus, o que é um problema.  

Enfim, os médicos podem, mas não podem tudo. Por isso não custa nada fazer o sinal da cruz ao passar na porta de uma igreja, usar roupa branca às sextas feiras, um passe na sessão espírita próxima de sua casa, tomar banho de pipoca oferecido pelas Iaôs em iniciação, se render a um galho de arruda de uma rezadeira, tudo aquilo por onde o saber médico não possa ir.

Foto: Quadro de Jan Van Neck (1683)

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